Dr.Emílio Maguchi, 59, mistura o calor humano brasileiro com a disciplina japonesa

Maya Santana, 50emais

Uma excelente entrevista de Mariana Kalil, publicada na revista Donna, com Dr. Emilio Moriguchi, 59, considerado uma das maiores autoridades do Brasil em geriatria. Formado pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, com pós-graduação nos Estados Unidos, e estudos na Suíça e no Japão, ele dá, nesta extensa entrevista, uma verdadeira aula de como envelhecer com qualidade de vida. O caminho do envelhecer bem, segundo o geriatra, passa pela “alimentação, estilo de vida, repouso, lazer, mas, acima de tudo, ter uma cabeça sã e um bom estado de espírito – requisitos fundamentais.”

Leia a entrevista:

Donna – O senhor é professor visitante da cidade de Oklahoma, no Japão. Durante dois meses por ano, em fevereiro e outubro, viaja para o outro lado do mundo para dar aulas a estudantes de medicina e enfermagem. É convidado porque há alguns conhecimentos e conceitos esquecidos pelos profissionais japoneses. Quais são eles?

Emilio Moriguchi – O relacionamento humano e a importância do coração. Não o órgão, mas o sentimento. São disciplinas que enfocam a importância de se relacionar com os pacientes.

Donna – O senhor está dizendo que, em um país altamente tecnológico como o Japão, foi esquecida a importância do afeto na relação médico-paciente?

Moriguchi – Exatamente. Os alunos e os médicos desconhecem ou esqueceram. O Japão tem os melhores hospitais do mundo. Trata-se de um país altamente desenvolvido em tudo. Na questão da saúde, ninguém espera para ser atendido – e este atendimento é bastante socializado e justo. O funcionário que acabou de entrar na empresa, por exemplo, recebe o mesmo atendimento e no mesmo balcão que o presidente desta mesma empresa. Quanto a isso, está tudo certo. Porém, falta calor humano.

Donna – O senhor pode ser mais específico?
Moriguchi – O paciente chega ao hospital e é direcionado para o setor de enfermagem, que mede os sinais vitais. Simultaneamente, o computador vai gerando o checklist e os tipos de exames que precisam ser realizados. Então, o paciente sai dali e vai direto para o laboratório com a requisição em mãos para coletar o sangue. Em seguida, leva o resultado para o médico, que avalia e, se necessário, já o encaminha para outros exames que o paciente realiza imediatamente. É tudo muito rápido e extremamente eficiente.

Donna – E sem nenhum tipo de diálogo, pelo visto…
Moriguchi – (risos) O paciente sai da consulta extremamente satisfeito com a eficiência do serviço, mas sem sequer ter trocado uma palavra com o médico. Durante todo esse período, não se abriu espaço para um breve diálogo que seja. O paciente não foi ouvido, não teve a oportunidade de falar dos seus medos, das suas angústias, de nada.

Donna – O senhor considera essa relação médico-paciente tão importante quanto um serviço altamente eficiente?
Moriguchi – Em muitos casos, o problema do paciente é fundamentalmente emocional. Não há nada de errado com a saúde dele, ou até existem alguma alterações, mas são consequência de questões psicológicas que ele vem enfrentando. Se não consegue dialogar, não consegue resolver. É justamente por isso que os japoneses me pediram para começar a ministrar essas disciplinas de relação humana.

Donna – Tem uma clínica no centro de Tóquio que leva o seu nome, um reconhecimento público de que os seus ensinamentos nesses dois meses em que leciona no país são fundamentais para a evolução da medicina japonesa como um todo. Como funciona na prática o seu trabalho na clínica?
Moriguchi – Basicamente da mesma maneira que funciona aqui. Enfocamos muito a relação médico-paciente, a importância da empatia, de se colocar no lugar do outro para tentar compreender do que ele precisa, o que sente. A primeira pergunta que sempre faço aos meus pacientes, seja no Japão ou no Brasil, é: “Em que posso lhe ajudar?”. Na hora em que ele começa a falar, você tem que estar apto e disposto a ouvir. Muitas vezes acontece de um paciente chegar com indicação de tratamento para colesterol alto ou pressão alta e logo percebo que é tudo decorrência de algum problema familiar ou profissional. Ao entender o funcionamento daquela pessoa como um todo, consigo tratá-la melhor na sua necessidade. A clínica Emilio Moriguchi é conhecida no Japão como o lugar que trata o coração. Não o órgão, mas a alma.

Donna – O senhor anda sempre com dois celulares?
Moriguchi – Sempre (risos). É para evitar as áreas de sombra. Dou os números dos meus celulares para os pacientes particulares e do SUS. Me coloco sempre à disposição, afinal de contas, estou aqui para ajudar. Tem algumas pessoas que abusam (risos), mas a maioria se dá conta de que não é para abusar, e eu sempre estou às ordens. Esse interessar-se, o querer o bem, o serviço ao próximo é um espírito que se perdeu muito no Brasil, no Japão, em qualquer lugar.

Donna – O senhor aprendeu a colocar em prática esses valores aqui no Brasil?
Moriguchi – Eu nasci no Japão, vim para cá com 10 anos e me criei aqui. Este lado mais afetivo e mais humano certamente é decorrência do meu aprendizado inserido na cultura brasileira. Por outro lado, tive uma educação extremamente rígida do meu pai, que está se aposentando agora com 90 anos (Emilio é filho do professor Yukio Moriguchi, o pai da geriatria no Rio Grande do Sul). Ele é um japonês muito exigente que nunca permitiu ter o filho fora da linha, sobretudo o mais velho, que sou eu. Somos quatro irmãos, e eu era sempre o primeiro a ser cobrado e a apanhar, se fosse o caso (risos). Eu tinha que dar o exemplo. A disciplina e a ordem japonesas associadas ao calor humano brasileiro forjaram a pessoa e o profissional que eu me tornei.

Donna – Disciplina e ordem o senhor tinha em casa. Mas e o calor humano? Onde aprendeu?
Moriguchi – No ano de 1968, quando chegamos aqui em Porto Alegre, não sabia falar português. Meus pais me matricularam em um grupo escolar na frente do antigo prédio da Brahma, ali na Cristóvão Colombo. Ninguém conseguia falar comigo. Eu era um ser humano incomunicável. Havia um rapaz chamado Hugo que era a única pessoa que, sem abrir a boca, me levava para almoçar, mostrava onde era o banheiro, essas coisas básicas de sobrevivência. Ele me ajudou muito em tudo. Aquele calor humano me marcou demais – até porque era desconhecido para mim. Aos 10 anos de idade, aprendi com o Hugo como devemos tratar o próximo.

Donna – O senhor formou-se em medicina na UFRGS e voltou ao Japão para fazer doutorado. Quando chegou lá, já se sentia diferente dos médicos japoneses?
Moriguchi – Muito, e essa diferença era visível. Todos vinham comentar como eu tinha me tornado um profissional distinto, sobretudo porque falava com os pacientes. Coisas triviais, do tipo “como anda a vida?” ou “como está em casa e no trabalho?”. Eles diziam que isso não era papel do médico.

Donna – O senhor realiza um trabalho voluntário para atender a população agrícola japonesa do sul do Brasil. Percorre uma área de quase 4 mil quilômetros de estrada de terra para estar presente em colônias japonesas espalhadas por Rio Grande do Sul e Santa Catarina. Gostaria que contasse como isso tudo começou.
Moriguchi – Quem iniciou este trabalho foi meu avô, em 1930. Ele foi o primeiro médico enviado pelo governo japonês para atender os imigrantes japoneses que não falavam português. Naquela época, ficou baseado em São Paulo e passava o ano inteiro a bordo de um jipe percorrendo da Amazônia ao Chuí. Quando completou 60 e poucos anos, foi diagnosticado com diabetes e soube que não viveria por muito mais tempo. Então, chamou meu pai para dar continuidade ao trabalho. Foi por isso que viemos para o Brasil. À medida que os anos foram passando, os japoneses do Norte foram desaparecendo, alguns migraram para São Paulo e Paraná, e as colônias do Rio Grande do Sul e Santa Catarina ficaram sem assistência médica. Há 10 anos, quando meu pai completou 80, designou a mim esse atendimento. Trata-se de um trabalho voluntário que realizamos na época de inverno e tenho a companhia de alunos de Medicina e Enfermagem do Japão. Desde 2009, eles vêm para cá me acompanhar nessa jornada. Foi quando perceberam o atendimento médico mais humano e sugeriram que eu levasse como disciplina para o Japão.

Donna – A esperança de vida tem aumentado no mundo inteiro e o Brasil compartilha dessa mudança demográfica. Já se calcula dois bilhões de idosos em 2050. O senhor afirma que o envelhecimento com qualidade de vida é uma conquista que depende do esforço individual e coletivo na busca de hábitos saudáveis. Que hábitos são esses?
Moriguchi – É um conjunto que inclui alimentação, qualidade de vida, repouso, lazer, mas, acima de tudo, ter uma cabeça sã e um bom estado de espírito – requisitos fundamentais e tão esquecidos hoje em dia. Fundamos recentemente no Hospital de Clínicas um grupo de espiritualidade em Medicina, que consiste justamente em trabalhar todos esses quesitos para ajudar os pacientes a envelhecer bem e com saúde.

Donna – Veranópolis é a cidade mais longeva do Brasil, onde a expectativa média de vida é de 72 anos. Nesta comunidade, onde há muitos idosos, as pessoas envelhecem bem: com saúde, participando da comunidade. Toda a comunidade, inclusive os jovens, respeitam muito os idosos. Com base em seus estudos realizados em Veranópolis desde 1994, o que o senhor conclui de mais relevante no processo do envelhecimento saudável?
Moriguchi – O que aprendemos ao longo de todos esses anos com os idosos de Veranópolis é que são trabalhadores, alimentam-se sobriamente com os alimentos que eles próprios produzem, fazem bastante atividade física. Há uma unidade familiar, que é a parte de integração social, que fazem com que sejam ouvidos e respeitados por todos. Além disso, desfrutam de momentos de repouso e lazer, quando gostam de se reunir com amigos e com a família, e desenvolvem a espiritualidade, que é ter fé e saber que, mesmo dentro do sofrimento, tudo tem algum sentido.

Donna – O senhor concorda que o estresse é um dos maiores ladrões de vida que nós temos? Por quê? Como amenizá-lo?
Moriguchi – Meu pai sempre me disse que há duas coisas que não caem do céu: dinheiro e saúde. Realmente, são duas coisas que precisam ser batalhadas. No dia a dia estressante que levamos atualmente, é preciso lutar para ter uma alimentação saudável, momentos de lazer, tempo para a família. Claro que o trabalho é importante. Mas não pode ser tudo. Hoje à noite, por exemplo, combinei de jantar fora com minha esposa. Fechei minha agenda a partir das 18h justamente para isso. Precisa de planejamento? Claro que sim. Eu poderia ficar trabalhando, como sempre fico. Mas encontrar tempo para cuidar das pessoas que são importantes para nós contribui para nossa saúde e paz de espírito. No dia a dia estressante que levamos atualmente, é preciso lutar para ter uma alimentação saudável, momentos de lazer, tempo para a família

Donna – O senhor é religioso?
Moriguchi – Meu pai é bastante católico. Sempre rezou muito. Passamos por momentos de muita dificuldade e certamente o que o manteve em pé foi a fé. Quando viemos para o Brasil, ele ficou os primeiros três anos sem trabalhar, pois precisava revalidar o diploma. Vivíamos com suas economias. Minha mãe me acordava às 4h para ajudá-la a fazer pão, já que não tínhamos dinheiro nem para isso – e eu era o irmão mais velho. Tudo para que, quando meu pai e meus irmãos acordassem, o alimento estivesse na mesa. Ele sofria muito por não conseguir dar tudo o que desejava para a gente, mas estava sempre com o terço na mão, rezando. Herdei essa fé e essa espiritualidade dele. Afinal, ele sempre foi o meu exemplo.

Donna – Como exerce a sua fé?
Moriguchi – Sempre que posso, vou à missa aos domingos. Quando estou envolvido com as consultas pelo Interior, não tenho tempo. Nesse caso, dou prioridade para o atendimento médico – e acredito que Deus fica muito mais contente por eu priorizar as pessoas. Mais importante de tudo é viver a caridade e exercer o amor ao próximo.

 

Donna – O isolamento mata?
Moriguchi – Pode não matar do ponto de vista cronológico. Pode não matar o físico, mas mata a alma. Um idoso em uma instituição, por exemplo, pode viver mais do que se estivesse na rua. Mas morre em seu espírito. No momento em que um idoso fica isolado, perde sua alma. Como professor de Geriatria, ministro uma disciplina que se chama Promoção e Proteção da Saúde do Adulto e do Idoso. Tem como objetivo ensinar o relacionamento com os idosos. Nosso trabalho, às segundas e quartas-feiras, é acompanhar os alunos a asilos para que eles conversem com esses idosos a fim de saber por que estão lá e se precisam de alguma assistência. É impressionante o feedback. O que a maioria quer é apenas alguém com quem conversar. Salvar as pessoas do isolamento também nos ajuda a viver mais.

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