Nos cine-debates não existem barreiras de escolaridade formal, ou idades, para a construção de um saber que possa ser apropriado por cada cidadão.

 

Organizado pelo Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da UNEB – Campus II – Alagoinhas / BA, foi realizado no período de 26 a 28 de setembro pp. o II Simpósio de Letramento, Identidade e Formação de Educadores tendo como tema Pesquisa e Formação: percursos de uma práxis pedagógica. O evento foi marcado pela diversidade de perspectivas abordadas em conferências, mesas temáticas, comunicações orais, e uma diversificada agenda cultural.

Convidada pela Prof.ª Dra. Aurea da Silva Pereira, representando a Comissão Organizadora, compusemos com outros pesquisadores a Mesa Temática – Arquivos, Memórias e Letramentos. Neste contexto apresentamos as reflexões que articulam os temas memória, identidade, cultura à apresentação de um projeto de educação continuada denominado A vida no cinema: horizontes do olhar.

Importante ressaltar que consideramos a educação continuada como processo de aprendizagem e formação – visando melhor desempenho e progresso, na vida pessoal e profissional – que articule os saberes formais e os derivados das práticas cotidianas. Neste caminho não existem barreiras de escolaridade formal, ou idades, para a construção de um saber que possa ser apropriado por cada cidadão, pois as experiências de vida constituem saberes – expressos em narrativas – das memórias e identidades, simultaneamente, estruturais e estruturantes.

Os espaços para a educação continuada têm como objetivo promover a abertura para essa troca de experiências e conhecimentos diversos; respeitar a diversidade; promover o diálogo, a inclusão e a parceria na construção de processo dinâmico de formação, superando os estigmas sobre os que não tiveram acesso à educação formal.

O que foi feito?

Nesta perspectiva, apresentamos o projeto realizado pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa do Envelhecimento-NEPE /PUC-SP– no qual articulamos os estudos sistemáticos de bibliografia no tema memórias social e envelhecimento – desdobrado em imaginário, nas construções sociais do papel dos velhos, processo narrativo; envelhecimento; processos de reconciliação; espiritualidade; relações familiares, com a pesquisa e análise do acervo de filmes de longa e curta-metragem que tematizassem questões existenciais – próprias aos humanos ao longo da trajetória de vida – considerando que esse recurso, por meio de plataforma interativa, dinâmica, portadora de múltiplas linguagens, possibilitaria a mediação das narrativas do projetado – vivido.

Todo o processo de formação foi apoiado em reflexão e análise crítica do material em reuniões presenciais, posteriormente escritas e partilhadas com o grupo de profissionais.

Após esta etapa foi realizado o trabalho de campo participativo, previamente autorizado, em espaços de convivência de idosos com diferentes níveis de escolaridade, sócio econômico e cultural, com exibição de filmes de curta-metragem e documentários, em 4 encontros consecutivos. Foram realizados sete grupos de cine-debate, com participação de 95 idosos, de 5 diferentes Centros de Convivência; com predominância do sexo feminino; faixa etária entre 61 a 90 anos.

Quais foram os resultados?

O resultado final do trabalho evidenciou o fortalecimento das possibilidades de reorganização da memória social – individual e coletiva – por meio dos ateliês narrativos (Momberger, 2008), mediados pelo cinema, e a reinserção social dos idosos em espaço dialógico de aprendizagem, favorecedor de escuta e partilha das demandas caladas, ampliando a compreensão do processo de envelhecimento e renovando as práticas gerontológicas.

Assim, em seu ciclo completo promoveu em espaço de formação continuada para pesquisadores e idosos em um processo de retroalimentação de saberes a partir das experiências vividas e partilhadas (Brandão, V.; Côrte, B., 2016).

O cine-debate como evento de letramento

No contexto deste II Simpósio – com tema Pesquisa e Formação: percursos de uma práxis pedagógica – analisamos a atividade do cine-debate como potencial evento de letramento – uma prática comunicativa, um espaço de fala – na medida em que o filme suscita, por meio de imagens, som, cor, sentimentos acionadores da memória social que, narrada, é ressignificada, constituindo-se em um novo ‘saber de si’ – autobiográfico – como uma reflexão sobre si, pela palavra; e heterobiográfico pelo trabalho de escuta e ‘leitura’ do relato do outro.

Nesta perspectiva, tomamos como ponto de partida a afirmação de Marcuschi (2001), citado por Pereira (2018), de que “letrado é o indivíduo que participa de forma significativa em eventos de letramento e não apenas aquele que faz um uso formal da escrita e leitura”.

Consideramos que o filme apresenta um universo rico de possibilidades por meio de múltiplas linguagens: o roteiro escrito; a música (e outros sons); as cores e seus significados; os silêncios expressivos; as metáforas, estimulando a criação de um universo ‘paralelo’ no qual ‘mergulhamos’ – um tempo fora do tempo – como formas não verbais de comunicação – imagens, palavras, sentimentos/ significados, emoções.

O cine-debate pode promover, por meio das múltiplas leituras, a expressão de emoções em palavras geradoras – alegria, tristeza, saudades, medo, angústia – ligadas às experiências vividas por cada um, em espaço social relacional.

Consideramos que é na e pela palavra que nos constituímos como seres humanos. Falamos, escutamos e escrevemos a partir dessa unidade básica, baseados em uma identidade que se funda, entre outros aspectos, em uma fronteira geográfica e numa língua comum, estabelecendo relações por meio de uma linguagem, que se forma na partilha de sentimentos e pensamentos. As palavras organizadas – a linguagem – tornam-se signos de comunicação, transmissão e preservação de conhecimentos, sentimentos e experiências de um passado vivido, individual e coletivamente, e reconstruído no presente. O tempo da narrativa não é o passado, mas o presente do qual parte o apelo à memória.

É o ato da fala como produto de uma interação, que se mostra e materializa no contexto semiótico-ideológico, de uma determinada comunidade linguística, que constrói o sentido das palavras, seus ecos, ressonâncias – no outro e em mim – no registro da escuta sensível.

“Linguajear”

Afirma o neurobiólogo chileno Humberto Maturana (2004), pesquisador e autor de obras fundamentais para o entendimento do humano e da cultura, que a existência humana acontece no espaço relacional do conversar, e considera a linguagem um fenômeno biológico relacional, resultado da convivência e da interação entre Eu e Outro, como uma trama tecida entre conversar e emocionar – denominada por ele “linguajear”. Segundo ele, nossa constituição como seres humanos se concretiza nas relações mediadas pelo diálogo, no conversar, e nas redes de conversações que se estabelecem como um longo processo, construindo a cultura.

Assim, o letramento pode ser considerado como mais do que o aprendizado formal de escrita e leitura, abrindo-se como toda a possibilidade de interação social com as diferentes simbologias que caracterizam e preservam as culturas. Tudo é sentido, tudo tem um sentido. Toda palavra, todo gesto, cada artefato, cada flor, cada cor ganha uma expressão própria ao narrador, cada narrativa é pessoal, é existencial, é universal. Pela narrativa somos todos construtores das culturas e dos mundos de sentidos.

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